A busca por igualdade move os indivíduos. Seja no âmbito pessoal ou profissional, as pessoas desejam tratamento único a todos que se encontrem em mesmas situações.
Dando continuidade aos comentários à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 32/2020, esse texto trata do Regime Jurídico Único (RJU) e do seu destino na proposta da Reforma Administrativa.
O Regime Jurídico Único: conquista histórica
Desde o ano de 1939[i], buscou-se estabelecer normas de caráter geral aos agentes do serviço público, em paralelo ao que a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) disciplina para os trabalhadores do setor privado.
No entanto, apenas em 1974 foi criado um regime jurídico próprio (estatutário) no âmbito federal, abrangendo apenas as Carreiras da Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e Contribuições Previdenciárias, e do Ministério Público. As demais Carreiras, muito mais numerosas, permaneciam com o vínculo baseado na legislação trabalhista (vínculo celetista)[ii].
Esse mesmo modelo foi replicado pelos estados e municípios durante as décadas de 70 e 80.
Dada a diferenciação, não foram poucas as reivindicações dos celetistas por isonomia, já que trabalhavam lado a lado com os novos estatutários, prestando serviços para a mesma pessoa ou no mesmo órgão.
Foi só em 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal (CF), que a uniformização de regras para funcionários estatais virou realidade (caput da redação originária do art. 39).
O que é Regime Jurídico Único?
“Regime jurídico” significa a adoção de normas aplicáveis a sujeitos em mesmas situações. No caso, o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos propõe regras gerais sobre direitos e deveres, garantias, proibições e penalidades aos agentes. É, pois, um regulamento geral da relação entre contratados (Servidores) e contratante (Ente da Federação).
A unicidade, por sua vez, é uma obrigação prevista no supracitado art. 39, a fim de que cada Ente federativo (União, DF, estados e municípios) estabeleça as premissas e as regras gerais para os seus servidores.
A atual proposta da Reforma Administrativa: pelo fim do RJU
A Reforma Administrativa desconsidera a conquista histórica e pretende, de fato, desconstitucionalizar o Regime Jurídico Único, retirando do texto constitucional a obrigação de cada Ente da Federação de uniformizar o tratamento dos seus servidores.
O ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso tentou fazer algo semelhante em sua Proposta de Reforma Administrativa. A PEC 173-A/1995, que resultou na Emenda à Constituição (EC) n. 19/1998, (i) afastava a obrigação dos Entes federados de estipular seus próprios RJUs e (ii) dava maior liberdade ao administrador público para gerir os recursos humanos.
Vale lembrar, no entanto, que a alteração promovida no art. 39 da Constituição pela EC n. 19/1998 está suspensa desde 02 de agosto de 2007, ou seja, não produz efeitos desde então. O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a cautelar requerida na ADI n. 2.135, retomou o texto original do dispositivo, que estabelece a obrigação de um Regime Jurídico Único.
Na atual proposta de Reforma Administrativa, o governo pretende alterar novamente a redação do art. 39, rebaixando as diretrizes gerais sobre gestão de pessoas, política remuneratória e organização do trabalho no serviço público para uma futura Lei Complementar Federal.
Não por coincidência, o Poder Legislativo aprova uma Lei Complementar (LC) por maioria absoluta, ao passo que é necessário quórum de 3/5 dos membros da Câmara e do Senado para alterar a Constituição. É uma clara escolha política para facilitar o trâmite legislativo de futuras alterações sobre estas regras.
É fato, no entanto, que aprovar Leis Complementares também não é tarefa fácil. Há algumas normas constitucionais que ainda precisam ser especificadas por LC, como as Avaliações Periódicas de Desempenho (art. 41, III, da CF), cuja norma regulamentadora ainda não foi editada, apesar de já existirem Projetos de Lei Complementar no Congresso Nacional[iii].
Como a experiência indica que há riscos na demora da elaboração desta Lei Complementar, a Reforma Administrativa propõe a inclusão do §1º-A no art. 39, prevendo que o DF, os estados e os municípios possuam competência plena para elaborar estas regras gerais até que a LC seja aprovada. Caso haja incompatibilidade entre as normas locais e a posterior Lei Complementar Federal, prevalecem as disposições da regra federal (§ 1º-B, art. 39).
Da unicidade à desunião: impactos da PEC 32/2020
Atribuir a cada Ente federado a missão de dispor das suas diretrizes gerais, sem um parâmetro comum, pode ser um verdadeiro tiro no pé. Para além do Distrito Federal e dos 26 estados, o Brasil possui 5.570 municípios[iv]. Basicamente, até que a Lei Complementar Federal disposta no art. 39 seja editada, há o risco de que 5.597 regramentos gerais totalmente divergentes entre si sejam elaborados.
Certamente, a previsão do §1º-A no art. 39 pode colocar em xeque a coesão entre os Entes da Federação. Um exemplo hipotético ilustra o caos potencial: como garantir um equilíbrio federativo entre um estado que valoriza o médico servidor público e o estado vizinho, que diminui a importância da saúde pública e paga módicos salários àquele profissional? Enfim, poderia ser chamado de público um serviço sem elementos comuns entre todos os Entes?
Após a edição da LC, ainda é preciso verificar como as diretrizes locais adequam-se ou divergem do parâmetro geral. Por mais que a solução da Reforma Administrativa seja a prevalência da regra federal em caso de divergência (§ 1º-B, art. 39), será preciso estabelecer normas claras para a transição e, ainda, respeitar as situações já consolidadas pelas normas locais.
Desigualdade e precariedade
A igualdade entre os servidores está mais uma vez sob clara ameaça. O iminente perigo fica mais palpável quando lembramos das propostas de redução da estabilidade e de criação de vínculos precários com a Administração.
No próximo artigo, abordaremos, ainda, as alterações propostas para a acumulação de cargos e para a redução de jornada e de salários. Todos esses aspectos devem ser analisados com cuidado, pois, quando aliados, podem ser extremamente prejudiciais ao serviço público.
[i] O Decreto-lei 1.713, de 28 de outubro de 1939, foi a primeira norma a sistematizar minimamente as regras aplicáveis a servidores públicos da União.
[ii] Lei 6.185, de 11 de dezembro de 1974. Art 1º Os servidores públicos civis da Administração Federal direta e autárquica reger-se-ão por disposições estatutárias ou pela legislação trabalhista em vigor. Art 2º Para as atividades inerentes ao Estado como Poder Público, sem correspondência no Setor privado, compreendidas nas áreas de Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e contribuições previdenciárias, e no Ministério Público, só se nomearão servidores cujos deveres, direitos e vantagens sejam os definidos em Estatuto próprio, na forma do Art. 109 da Constituição Federal.
[iii] Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/547583-proposta-regulamenta-avaliacao-de-desempenho-dos-servidores-e-permite-demissao/ e https://www.camara.leg.br/noticias/558680-proposta-regulamenta-avaliacao-de-desempenho-e-permite-demissao-de-servidores/. Acesso 22 de setembro de 2020.
[iv] Informação oficial, disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/panorama.