Dando continuidade à sequência de artigos sobre os impactos jurídicos da pandemia do Covid-19, hoje trataremos sobre os seus efeitos em contratos de fornecimento firmados com a Administração Pública.
Contratos de fornecimento, em geral, são caracterizados pela transferência de bens ou de mão-de-obra mediante remuneração. O Poder Público utiliza esse documento para contratar particulares que forneçam recursos para realizar obras [i] ou para prestar serviços públicos [ii]. Por isso, são elementos centrais deste negócio a mão de obra, os insumos e a importação.
Cada um destes elementos precisa estar bem detalhado, de modo que o escopo, as responsabilidades, os direitos e os deveres das partes estejam extremamente claros. Dessa maneira, o resultado é o mais desejado: tornar transparentes os riscos inerentes ao contrato (e quem os suportará), como já no abordamos no artigo “O contrato bem redigido agora (mais do que nunca) é obrigatório! Um rápido olhar na Lei da Liberdade Econômica”.
Em contratos firmados com a Administração Pública, o compartilhamento de riscos é uma prática que decorre da própria aplicação do princípio constitucional da eficiência. Maximiza-se a eficiência contratual cada vez que o risco é alocado à parte que possui maiores condições de administrá-lo. Por essa razão os (poucos e) bons contratos já preveem os possíveis e prováveis riscos e (ii) qual parte arcaria com eles, por vezes incluindo como anexo a matriz de riscos contratual [iii].
Alocar riscos também inclui aqueles não conhecidos no momento da contratação. É o caso da persistente pandemia do Covid-19, cujo risco não foi alocado em nenhum contrato de fornecimento firmado com a Administração Pública. A virose de proporções mundiais veio desafiar a interpretação de praticamente todo tipo contratual, em especial aqueles firmados com o Poder Público.
A pandemia em si, assim como as medidas para controlá-la impactaram os contratos de fornecimento, ao menos pelas seguintes ocorrências: (i) paralisação das atividades que não eram consideradas essenciais, em um primeiro momento, ante os decretos estaduais e/ou municipais; (ii) triagem de trabalhadores que poderiam trabalhar, seja porque não estavam infectados, seja porque não faziam parte do grupo de risco; (iii) dispêndio com produtos de segurança pessoal (máscaras, álcool em gel etc); (iv) redução da oferta de insumos industriais, dada a interrupção temporária da produção industrial, e consequente aumento dos preços; e, por fim, (v) encarecimento da importação de produtos por conta da redução da atividade aérea e da demora no descargo de navios [iv].
Todas essas situações alteram diretamente os elementos centrais do contrato de fornecimento. Por mais que consequências citadas pudessem ocorrer em outras situações, o risco de uma pandemia mundial não é inerente ao negócio contratado, ou seja, não é um risco que decorre da própria realização da atividade empresarial de fornecimento.
Na verdade, a pandemia é evento incomum e imprevisível que, no Direito, é categorizada como força maior, uma vez que as partes não podem evitar ou impedir seus efeitos. Apoiar-se nesta categoria não significa finalizar a relação contratual ou criar entraves a sua execução, mas sim garantir o seu devido cumprimento mesmo em contextos que fogem da normalidade.
O efeito imediato da averiguação de força maior nos contratos de fornecimento é a possibilidade de revisão contratual, que não é automática. É necessário que a parte que sofreu prejuízo comunique à Administração Pública, por meio de um procedimento específico, e comprove que a pandemia causou real e significativo impacto na alocação de riscos original do contrato.
Demonstrado o prejuízo, a empresa contratada propõe à Administração Pública a revisão contratual, solicitando (i) a repactuação de prazos; (ii) a prorrogação do contrato; ou (iii) a majoração da remuneração originalmente prevista.
A melhor estratégia sempre decorre da análise da situação empresarial de momento: por exemplo, em caso de aumento substancial das despesas para o fornecimento ao Poder Público, a repactuação de valores pode ser uma proposta interessante para que não haja interrupção do pacto. Já em situações que envolvam a ausência de insumos suficientes, o elastecimento dos prazos de entrega pode ser a medida mais adequada. É a típica situação em que a tomada de decisão depende dos detalhes do caso concreto.
Nas próximas semanas, abordaremos novos temas relacionados a questões jurídicas surgidas com a pandemia do Covid-19.
[i] Lei n. 8.666/1993. Art. 6º, I – Obra – toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta;
[ii] Lei n. 8.666/1993. Art. 6º, II – Serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais;
[iii] Documento que detalha os riscos assumidos pela Administração Pública e pelo particular.
[iv] “Covid-19 encarece importações, e hospitais esperam até 90 dias por insumos”. Disponível em https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/03/23/coronavirus-importacoes-insumos.htm?cmpid=copiaecola. “Pandemia mostrou o alto custo da importação no País”. Disponível em https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,pandemia-mostrou-alto-custo-de-importacao-no-pais,70003276610. “Com pandemia, importações caem 10,5% no Brasil”. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/08/16/com-pandemia-importacao-cai-105-ate-julho.htm?cmpid=copiaecola.