Como já vimos em artigos anteriores, a Proposta de Reforma Administrativa (PEC n. 32/2020) quer alterar as impressões que hoje se tem (ou, ao menos, o governo atual tem) sobre o serviço público.
Para isso, a ideia não é apenas flexibilizar (ou precarizar) os regramentos dos servidores públicos, mas permitir que a Administração Pública adote “mecanismos de gestão mais modernos e flexíveis”, como consta na Exposição de Motivos da PEC.
Será mesmo uma mera modernização? Por que dar mais poder ao Executivo? São essas as questões a serem discutidas em mais um artigo sobre a Reforma Administrativa.
Auto-organização do Poder Executivo
Na Exposição de Motivos da Reforma, o Ministro Paulo Guedes deixa claro que quer “ampliar a auto-organização do Poder Executivo”. Em síntese, quer tornar o Executivo o dono das regras do seu jogo.
Propõe-se, assim, um engrandecimento do Poder Executivo, que passa a ter mais atribuições ligadas ao serviço público.
As “canetadas” do Presidente da República passam a ser permitidas para casos em que não houver aumento de despesa. Não será mais necessária uma lei formal, aprovada pelo Congresso Nacional, de modo que as matérias poderão ser dispostas por decretos autônomos.
Com a aprovação do texto da PEC n. 32/2020, o Chefe do Poder Executivo passa a, sozinho, poder extinguir cargos nomeados (Ministros de Estado, cargos de Ministro de Estado, cargos em comissão, cargos de liderança e assessoramento, funções de confiança), mesmo se estiverem ocupados. Nesse cenário, não apenas os servidores perderão seus cargos, como os próprios cargos serão perdidos do RH estatal.
Da forma mais genérica possível, a PEC também estipula que esses cargos, além dos cargos públicos efetivos vagos, poderão ser transformados, desde que respeitados os novos vínculos. Se compreendermos transformação como conversão, mudança de forma, entregamos ao Presidente da República simplesmente a prerrogativa de fazer o que bem entender com os cargos públicos, a partir de uma simples canetada.
Na mesma linha, através de decreto também poderão ser alteradas e reorganizadas as Carreiras do Poder Executivo Federal.
Em relação às instituições governamentais, propõe-se que o Chefe do Executivo consiga criar, fundir, transformar ou extinguir os Ministérios e os órgãos subordinados à Presidência da República, também por decreto. Deixa de ser necessário, pois, a aprovação de lei para tanto.
Autarquias e fundações públicas entram no mesmo esquema, sendo passíveis de extinção, transformação e fusão por decretos. Essa é uma questão que demanda muita cautela, uma vez que não são instituições de governo. Diferentemente das pastas ministeriais, que servem para o assessoramento do Chefe do Executivo em matérias específicas (Saúde, Economia, Meio Ambiente, etc), as entidades autárquicas executam atividades típicas de Estado, como controle e vigilância sanitária (ANVISA) e gestão de benefícios previdenciários (INSS), de forma descentralizada.
Não nos parece adequado que instituições assim fiquem à mercê de canetadas do Executivo, até porque possuem autonomia gerencial e orçamentária em relação à Presidência da República e são criadas por lei específica. Mantendo o padrão, o ideal é que a alteração no regramento de autarquias e fundações públicas federais ocorra por alteração de lei e não por meros decretos.
No momento em que vivemos, é possível imaginar a extinção do IBGE, por exemplo, por um mero ato do Presidente? A entidade fundacional é essencial para a coleta e a interpretação de dados do Estado brasileiro. Extinguir tão relevante instituição é uma decisão de muito impacto, e não parece adequado excluir dessa decisão os diversos representantes legislativos.
Enfim, a proposta ronda a proatividade total e completa do Executivo, sendo desnecessária a validação dos outros Poderes da República. Será que cola?
Um “super” Poder Executivo?
A pretexto de modernizar o Estado brasileiro, a Reforma Administrativa parece nos conduzir à criação de mais poderes dentro do próprio Poder Executivo. Isso porque aumenta as competências e as prerrogativas do Chefe deste Poder. Qual é a real intenção?
O Estado brasileiro é constituído por três Poderes (Executivo, Judiciário e Legislativo), independentes entre si, mas que mantém um diálogo constante e necessário à democracia. Cada um possui suas próprias atribuições.
A ideia é, justamente, ter três forças distintas, autônomas e harmônicas entre si, para que o nosso país não caia nas mãos de um único grupo. Por essa razão, a nossa Constituição prevê que diversos deveres precisam ser resolvidos conjuntamente.
Um exemplo é justamente a criação e a extinção de Ministérios e de órgãos da Administração Pública. Pela atual redação do art. 48, XI, da Constituição, tais alterações só podem ocorrer por meio de lei aprovada pelo Poder Legislativo Federal (Congresso Nacional). Seguindo esta norma, o Governo Bolsonaro conseguiu a aprovação da Lei n. 13.844/2019, que extinguiu 7 Ministérios do organograma. No entanto, a ideia do governo agora é tornar essa atribuição exclusiva do Poder Executivo (art. 10, V, da PEC n. 32/2020).
Na atuação pública, há questões que não podem ser resolvidas isoladamente, por terem reflexos em vários setores. E, ao incharmos um dos poderes, retiramos, necessariamente, o espaço de outro.
Aumentar as atribuições do Presidente da República não parece eficiente, como espera o Ministro Paulo Guedes. É preciso rememorar que há um justo receio da volatilidade destes decretos, uma vez que o Chefe do Poder Executivo pode ser alterado, em regra, a cada 4 anos, através das eleições.
Assim, a cada 4 anos, a Esplanada dos Ministérios poderia ser completamente remodulada, para atender aos anseios de cada novo governante. E se não houver mais o controle do Poder Legislativo, que ainda poderia evitar eventuais abusos ou mudanças aleatórias, o Executivo, fatalmente, se tornará um “Super-Poder”, podendo lançar mão de suas “canetadas” (ou poderíamos chamar de “marretadas”?) a “torto e a direito”.
E aí, então, quem poderá nos defender?