Nos últimos artigos, mostramos que há, na Reforma Administrativa, um movimento de precarização do serviço público, tanto pela inserção do “princípio da subsidiariedade” no texto constitucional, quanto pela previsão de pautas potencialmente lesivas, como a redução da estabilidade, a fragilidade dos vínculos públicos e o fim do regime único dos servidores.
Esse movimento fica ainda mais claro quando analisamos outras duas pautas delicadas da PEC n. 32/2020: (i) a ampliação das hipóteses de acumulação de cargos; e (ii) a possibilidade de redução dos salários com a redução da jornada.
Acumulação de cargos
À exceção dos integrantes de Carreiras típicas de Estado (inclusive durante o vínculo de experiência), a PEC permite que todos os demais servidores possam acumular vínculos públicos e privados, desde que haja compatibilidade de horários e não implique conflito de interesses.
O governo quer permitir que um mesmo servidor ocupe, simultaneamente, cargos públicos por prazo indeterminado, cargos de liderança e assessoramento e/ou cargos por prazos determinado.
Nos termos da Exposição de Motivos da PEC n. 32/2020, a tentativa é de aproximar “a realidade do setor público à do setor privado”.
À primeira vista, a proposta pode parecer inofensiva ou mesmo pró-servidor. Mas, então, por que manter a limitação tão somente para os cargos típicos de Estado? A questão, novamente, nos remete à precarização dos serviços públicos.
A vedação à acumulação de cargos tem uma razão de ser. A maioria dos cargos públicos, por sua relevância, exige uma jornada de trabalho de 8h/dia ou 40h/semana, o que proporciona maior especialização e dedicação do servidor em determinada área.
Hoje, somente é possível acumular (i) dois cargos de professor; (ii) um cargo de professor com outro técnico ou científico; ou (iii) dois cargos de profissional da saúde. Todos os outros cargos públicos são inacumuláveis.
Ao permitir que um servidor tenha dois (ou mais) vínculos públicos ao mesmo tempo e, ainda, exerça atividades remuneradas na iniciativa privada, o resultado provavelmente não deverá “servir ao público”. Com o tempo, esses vínculos, que já são precários, poderão se tornar meros “bicos”.
Trata-se da desvalorização, ainda que velada por uma suposta liberdade, dos serviços “não-típicos de Estado”, exercidos pelos servidores preconceituosamente chamados “de baixo escalão”.
Redução de jornada com redução de salários
A PEC n. 32/2020, primeiramente, proíbe a redução de jornada de servidores sem a correspondente redução salarial (art. 37, XXIII). Logo após, veda a redução da jornada e da remuneração tão somente dos cargos típicos de Estado (art. 37, §20),
Assim, por meio de uma linguagem (propositadamente?) invertida, a proposta permite a diminuição da carga horária de todos os demais servidores públicos, com a redução proporcional de seu salário.
Essa proposta viabiliza o remanejamento da força de trabalho de pública, diminuindo, por exemplo, funções públicas essenciais, como a ambiental. Possibilitada a redução da jornada do servidor que exerce, por exemplo, atividades fiscalizatórias, o governo (federal, estadual e distrital) poderá transferi-las para uma empresa privada, por meio de “Instrumentos de Cooperação” (previstos no art. 37-A da CF, conforme redação dada pela PEC n. 32/2020).
Assim, o setor público “controlaria” seus gastos com pessoal e, ainda, receberia a contrapartida ($) de uma licitação ao setor privado. O resultado dessa equação poderá ser a diminuição dos salários dos servidores, a limitação de suas funções e, talvez (e por que não?), a privatização de serviços públicos.
É preciso alertar que, como essa possibilidade de redução de jornada e de salários está implícita na PEC n. 32/2020, não há regra de transição expressa que afaste a sua aplicação também aos atuais servidores públicos de todos os cargos que passarão a ser considerados “por prazo indeterminado”.
Essa pretensão do governo não é novidade. Basta lembrar da PEC Emergencial (PEC n. 186), da PEC do Pacto Federativo (PEC n. 188) e da PEC da Regra de Ouro (PEC n. 438), que pretendem vedar progressões e promoções aos servidores e possibilitar a redução de 25% da remuneração na hipótese de redução de jornada.
Ocorre que essas propostas esbarram na garantia fundamental da irredutibilidade de vencimentos, prevista no art. 37, XV, da Constituição, dispositivo que, deixemos claro, não está sendo revogado nem alterado pela Reforma Administrativa.
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) debateu a constitucionalidade de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), inclusive do art. 23, §2º, que faculta a redução temporária da jornada de trabalho com a adequação dos vencimentos à nova carga horária (julgamento conjunto das ADIs n. 2324, 2238, 2241, 2250, 2256, 2261, 2365 e da ADPF n. 24)
Apesar de ainda não ter sido concluído o julgamento (que envolve outros pontos da LRF), o STF, por maioria, já entendeu que é inconstitucional “flexibilizar a irredutibilidade de salários para gerar alternativas menos onerosas ao Estado” (notícia).
O Ministro Edson Fachin, que abriu a divergência nesse ponto, relembrou: “a jurisprudência da Corte inviabiliza qualquer forma de interpretação diversa, valendo-se da cláusula de irredutibilidade dos rendimentos”. A Ministra Carmem Lúcia seguiu em parte a divergência e deixou claro: “é possível reduzir a jornada de trabalho, mas não o vencimento do servidor”.
Em resumo, com essa proposta de Reforma Administrativa, o Poder Executivo (Presidente, Governadores, Prefeitos, etc.) teria poderes para reduzir a jornada e o salário de servidores de todos os poderes, inclusive do Legislativo e do Judiciário. Porém, ainda que ela seja aprovada, o Judiciário é quem dará a palavra final no controle de constitucionalidade dessa eventual Emenda à Constituição.
O que restará do serviço público?
Tentamos mostrar que pautas pouco comentadas da Reforma Administrativa podem ser muito perigosas, caso aprovadas. A possibilidade de acumulação de cargos não é uma benesse. A redução de jornada e de salários é um risco palpável.
Vale lembrar que estamos no campo das possibilidades. Não podemos afirmar que a Reforma Administrativa, com certeza, será um grande desastre. Mas se há possibilidades tão danosas ao serviço público e, portanto, a todos os cidadãos que usufruem desses serviços, por que não trabalharmos na prevenção?
A PEC n. 32/2020 foi apresentada ao Congresso há mais de 20 (vinte) dias e ainda não foram propostas emendas que busquem alterar os pontos mais sensíveis da Reforma. O que restará do serviço público brasileiro, a nosso ver, depende justamente dessas iniciativas.