A proposta de Reforma Administrativa – PEC n. 32/2020 – prevê 5 novos tipos de vínculo público (art. 39-A): (i) vínculo por prazo determinado; (ii) cargos de liderança e assessoramento; (iii) vínculo de experiência; (iv) cargo com vínculo por prazo indeterminado; e (v) cargo típico de Estado.
À exceção dos cargos típicos de Estado, a característica comum entre eles é a precariedade, ou seja, a livre demissão. Mas como funcionará na prática?
Vínculo por prazo determinado
É a contratação de empregado sem concurso público, mediante processo seletivo simplificado, para servir a projetos específicos e por prazo certo.
Antes, essa era a modalidade da contratação temporária, que, segundo a Constituição (art. 37, IX), só poderia ser utilizada em casos de excepcional interesse público.
Em teoria, esse instituto auxiliaria no controle de situações imprevisíveis e urgentes, permitindo a contratação rápida de mão-de-obra, sem a burocracia de um concurso. Por exemplo, ante a pandemia do novo coronavírus, o Estado poderia contratar imediatamente a quantidade necessária de profissionais da saúde para viabilizar o atendimento de toda a população.
A história nos mostra que, nas poucas utilizações dessa modalidade, o governo foi infeliz. O final da década de 90 foi marcada pelo movimento de terceirização da perícia médica para concessão de benefícios previdenciários. Na época, as perícias passaram a ser realizadas por médicos particulares que, desinvestidos do múnus público, ou concediam indiscriminadamente benefícios indevidos ou, na outra ponta, indeferiam benefícios legítimos por afinidades de quaisquer naturezas com os empregadores dos segurados.
Como consequência, 40% da População Economicamente Ativa brasileira tornou-se destinatária de, ao menos, um benefício previdenciário. Se esse movimento tivesse prosseguido, em breve nos tornaríamos um país matematicamente inviável sob o aspecto econômico-social.
Apesar dos problemas históricos, a proposta do governo é aumentar ainda mais as possibilidades de “contratação temporária”.
A PEC n. 32/2020 propõe que, além dos casos de calamidade/emergência, a “contratação por prazo determinado” também possa ser utilizada para (i) execução de atividades ou projetos de caráter temporário e (ii) realização de atividades/procedimentos sob demanda (art. 39-A, §2º).
São possibilidades tão genéricas que se encaixariam em praticamente qualquer projeto, obra ou serviço público, bastando a simples indicação da duração do contrato.
Imagine o caso de um Prefeito que decida construir um enorme estádio na cidade. Caso ele possa contratar fiscais temporários para avaliar a obra, haveria uma enorme margem para superfaturamento e outras fraudes.
A “contratação por prazo determinado” funcionaria, portanto, como um “cheque em branco” não só para o Presidente, como para os 27 Governadores, para os 5.570 Prefeitos e, ainda, para os demais gestores públicos existentes no Brasil (Presidentes de Câmaras de Vereadores, Presidentes de Tribunais de Justiça, etc.).
Então, a quem acabará servindo essa mão-de-obra? Ao interesse público ou ao interesse de poucos?
Cargos de liderança e assessoramento
A Constituição sempre reservou a chefia dos órgãos às indicações políticas. São as famosas “funções de confiança”, reservadas a servidores ocupantes de cargos efetivos, e os “cargos em comissão” (também conhecidos por “DAS”), que podem ser ocupados por qualquer profissional indicado para a vaga.
Os ocupantes destes postos podem ser nomeados e exonerados livremente. É o caso de Ministros de Estado, Secretários e Subsecretários, Diretores, assessores, etc.
A Reforma Administrativa propõe acabar com as funções destinadas apenas a servidores de Carreira. Todos os “cargos de liderança e assessoramento” poderão ser ocupados por pessoas estranhas à Administração Pública.
Mas não se engane com a nomenclatura; esses cargos não se limitarão aos postos de chefia e de assessoramento. A proposta é incluir nessa categoria “outras posições que justifiquem a criação de um posto de trabalho específico com atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas”.
Ok. E qual seria o problema disso, se as “contratações políticas” são necessárias para que o governo tenha “pessoas de confiança” em cargos estratégicos? Vamos tentar ilustrar.
Ao assumir o cargo de Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles substituiu praticamente todos os cargos comissionados do IBAMA por militares (notícia). Quando muito, esses militares tinham experiência limitada à polícia ambiental, sem correlação com as funções desempenhadas no IBAMA.
Atualmente, vemos o aumento exponencial do desmatamento na Amazônia (notícia) e a maior devastação histórica do Pantanal, em razão de queimadas que já ultrapassam 2 milhões de hectares (notícia). Mera coincidência? Ou a mudança de estratégia política dentro dos órgãos ambientais colaborou para esses desastres?
Vínculo de experiência
Como falamos no primeiro artigo, após a aprovação em concurso público, o candidato será submetido a um “vínculo de experiência”, de no mínimo 1 ano para “cargos com vínculo por prazo indeterminado” e de no mínimo 2 anos para “cargos típicos de Estado”.
Após a conclusão desse período, os candidatos passarão por uma “avaliação especial de desempenho”, que ainda será regulamentada. Apenas os melhores colocados nessa fase, se aprovados pela avaliação da chefia, assumirão o status de “servidores públicos”. Os demais candidatos serão dispensados. O “vínculo de experiência” será, portanto, a etapa final e eliminatória do concurso.
Vemos uma séria incongruência no modelo proposto: o Estado contratará mais servidores do que realmente precisa.
Suponhamos que, no edital do concurso, estejam previstas 20 vagas. Para supri-las, o Estado admitirá 100 candidatos e avaliará quais deles prestaram os melhores serviços durante o “vínculo de experiência”. Por óbvio, o trabalho deverá ser remunerado, sob pena de enriquecimento ilícito do Estado.
A conta não fecha. Se o Estado precisava contratar menos, por que contratar mais? Qual a razão dessa “massa excedente” de contratações quando a principal justificativa da Reforma é o excesso de gastos com pessoal?
Além disso, a vinculação da aprovação definitiva do candidato à avaliação da chefia imediata, por si só, contamina todo o procedimento. Há muita margem para o subjetivismo e para o favorecimento do alinhamento ideológico do candidato com o chefe (que nem servidor público deverá ser, como falamos ali em cima), em detrimento de alinhamento institucional.
Não bastasse, a dispensa dos demais candidatos deve ser melhor refletida. Mesmo sem vínculo algum, eles terão acesso a procedimentos, dados e informações acerca de atividades exclusivas de Estado, muitas vezes sigilosas.
Um exemplo claro seria o de um candidato ao cargo de Oficial de Inteligência da ABIN. Por no mínimo 2 anos, ele terá contato com temas estratégicos para a defesa nacional, como ameaças terroristas e espionagens estrangeiras. Se ele não for aprovado na última etapa do concurso, o que ocorrerá com todo o conhecimento adquirido? Como o Estado poderá controlar e impedir eventuais “vazamentos de informações”?
Cargo com vínculo por prazo indeterminado
Trata-se de cargo destinado ao “desempenho de atividades contínuas, que não sejam típicas de Estado, abrangendo atividades técnicas, administrativas ou especializadas e que envolvem maior contingente de pessoas”. Nessa modalidade, o servidor deve ser aprovado em concurso de provas e títulos e passar por um “vínculo de experiência” de, pelo menos, 1 ano.
A PEC não elenca exemplo de cargos que teriam esse tipo de vínculo, mas podemos tentar inferir.
Segundo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), “cargo técnico é aquele que requer conhecimento específico na área de atuação do profissional, com habilitação específica de grau universitário ou profissionalizante de 2º grau” (STJ, RMS 42.392/AC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, julgado em 10/02/2015, DJe 19/03/2015).
Considerando-se a definição de atividades técnicas e, ainda, que os “cargos típicos de Estado” serão bastante limitados, os cargos “por prazo indeterminado” corresponderão a, basicamente, todos os demais cargos públicos que conhecemos hoje: Técnicos e Analistas das mais diversas Carreiras, com especialidades como engenharia, administração, enfermagem, comunicação social, psicologia, etc.; servidores de “áreas-meio”, que desenvolvem funções administrativas; servidores de Autarquias (INSS, ANAC, INCRA, etc.); professores públicos, etc.
A proposta é que esses servidores não tenham mais estabilidade, nem nenhuma outra prerrogativa a que hoje fazem jus. Se isso prevalecer, esses servidores teriam garantias ainda mais reduzidas do que funcionários do setor privado, que ao menos recebem verbas rescisórias (FGTS, INSS, seguro-desemprego) ao serem dispensados.
Cargos típicos de Estado
Finalmente, o último vínculo proposto pela PEC n. 32/2020 é o dos “cargos típicos de Estado”, reservados às Carreiras que desempenham atividades próprias e essenciais do Estado, sem correspondência no setor privado.
Este seleto grupo ainda será definido em posteriores projetos de lei. O governo federal ditará as balizas e cada Estado e Município terá liberdade para indicar exatamente quais Carreiras considera “típicas de Estado”.
A despeito da indefinição, já é possível prever alguns cargos que, por suas atribuições, deverão ser incluídos nessa categoria: policiais, fiscais, diplomatas, gestores.
Ao que tudo indica, essas Carreiras manterão as prerrogativas típicas dos “cargos públicos” que conhecemos hoje, como a estabilidade. Ainda assim, é importante lembrar que será uma estabilidade “reduzida”, pois a pena de demissão poderá ser banalizada com a trivialidade.
Vínculo precário, serviço precário
Uma vez apresentados os tipos de vínculos previstos na PEC 32/2020, é necessário refletir: como essas mudanças poderão impactar, a longo prazo, na qualidade dos serviços públicos?
Na casa “Estado”, os servidores são os “alicerces”. Eles que sustentam o funcionamento da máquina pública. Sem uma boa fundação, é uma questão de tempo até que essa casa, que é de todos nós, corra sérios riscos de cair.