‘”Polarização” é a palavra do momento. Para além da polarização política que aflora os ânimos dos brasileiros, vivemos uma clara polarização administrativa: de um lado, o governo; de outro, os servidores públicos.
Promulgada no último dia 15, a proposta de emenda constitucional (PEC) emergencial representou mais um capítulo da série “governo versus servidores públicos” [1], da qual fazem parte a PEC da Previdência, a PEC da Reforma Administrativa, as demais PECs do chamado Plano Mais Brasil e, em certa medida, a PEC do Teto de Gastos e a PEC do Orçamento de Guerra.
A polarização foi tão decisiva para as eleições de 2018 quanto para a aprovação dessas alterações em nosso texto constitucional [2]. Mas, após sentirmos na pele as nefastas consequências dessa guerra ideológica, somos todos responsáveis por exercer um juízo crítico distante de emoções. Nada é preto ou branco, a vida real tem muitos tons.
A PEC emergencial, apresentada antes mesmo do início da pandemia, era essencialmente uma proposta de ajuste fiscal, que limitava o uso do dinheiro público de acordo com o teto de gastos e com a chamada “regra de ouro” [3].
No que toca ao funcionalismo público, a PEC n° 186/2019 previa: 1) a redução da jornada dos servidores públicos, com consequente diminuição de salários em até 25%; 2) a suspensão de progressões funcionais; 3) a proibição da concessão de reajustes salariais; 4) a vedação à realização de novos concursos públicos; e 5) a inclusão dos pensionistas no cálculo das despesas com pessoal, entre outras medidas.
Alterações tão significativas, que interferem diretamente na capacidade de investimento e de crescimento do país, mereciam um debate técnico, denso e detalhado. No entanto, a gravidade da crise sanitária e econômica alcançada no primeiro trimestre de 2021 trouxe um importante elemento de barganha para a mesa de negociação dessa PEC: o auxílio emergencial.
A necessidade urgente de um novo programa social que garantisse a sobrevivência de milhões de brasileiros serviu como cortina de fumaça para uma votação acelerada, desorganizada e até mesmo caótica. Não foram raras as vezes em que os parlamentares confundiram a emenda que estava sob votação ou trataram sobre assuntos estranhos à discussão, como a recente anulação da sentença do ex-presidente da República.
Paralelamente a essa confusão, o Legislativo e o Executivo firmaram acordos para assegurar a aprovação da PEC, custe o que custar. As negociações envolveram, basicamente, os direitos dos servidores públicos. O governo cedeu em vários pontos, mas foi mantido o acionamento dos “gatilhos” com relação aos reajustes salariais e à realização de novos concursos.
Quando as despesas obrigatórias atingirem o patamar de 95%, os “gatilhos” serão ativados (artigo 167-A da CF e artigo 109 do ADCT), congelando-se os salários dos servidores e limitando-se as possibilidades de concursos ao preenchimento de cargos vagos decorrentes de aposentadoria, demissão ou falecimento. Hoje, 13 estados e o Distrito Federal já ultrapassam esse limite de 95%. Para a União, esse teto deverá ser alcançado em 2025 [4].
E, assim, uma discussão que deveria ter caráter eminentemente fiscal foi reduzida ao antagonismo do governo contra os servidores públicos, muitas vezes com apoio e aplausos da população.
E pra quê? A mobilização nacional em torno do julgamento dessa PEC trouxe os resultados esperados?
Sobre o auxílio, a PEC não detalhou valores, duração ou condições, apenas instituiu um limite de gastos com esse programa (R$ 44 bilhões). Esse valor poderia ter sido concedido, inclusive, por meio de projeto de lei ou de medida provisória, como feito no ano passado, cortando-se gastos que fossem efetivamente desnecessários, o que não ocorreu.
Quanto à reforma fiscal, nas palavras de Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, são “muitas complicações no texto constitucional para pouco ajuste fiscal, na prática. É muito barulho por (quase) nada” [5].
Como o economista explica em sua rede social Twitter, o problema original que a PEC buscava resolver não foi resolvido: “Em 2022, a PEC não gerará ajuste algum. Repito, ajuste zero para a União como consequência dessa PEC. Inclusive, a depender da inflação do fim do ano em relação à do meio do ano, poderá haver espaço para conceder reajustes salariais, curiosamente, em ano eleitoral”.
Analisemos, portanto, os fatos. A PEC não trouxe resultados fiscais efetivos, não garantiu um bom auxílio emergencial, mas gerou sério prejuízo ao funcionamento do serviço público.
Sem interferências ideológicas, é fácil constatar a importância de um serviço público de qualidade. É o serviço público que garante o acesso à saúde aos milhões de brasileiros que não possuem planos privados. É o serviço público que permite nosso acesso à Justiça. É o serviço público que faz a limpeza das nossas ruas, que atende nossas crianças nas creches e escolas, que cria vacinas em tempo recorde durante uma pandemia.
Se não houver investimento e cuidado, o serviço público, aos poucos, vai se desfazendo. Perde a capacidade de atender à população, de fazer estradas, de garantir a segurança nas ruas, de investir em ciência, tecnologia, inovação. Hoje, o Brasil já sofre com a escassez de pessoal. Contudo, na contramão do movimento bem sucedido de outros países, o Brasil insiste em não apenas deixar de investir, como cortar os gastos que são elementares.
O reajuste salarial não é um “privilégio” dos servidores. É um direito de qualquer trabalhador de ter o valor do seu salário corrigido, adequando-se aos novos preços do mercado. A contratação de novos servidores não é uma festança desenfreada. À medida que o número de brasileiros aumenta, a demanda por serviços públicos também aumenta, por isso se torna necessário contratar novos servidores.
Não é uma questão ideológica, é uma simples questão de lógica. Enquanto deixarmos as polarizações à frente do discurso público, certamente não chegaremos a lugar algum. De todo modo, o prenúncio foi dado: a série continua na votação da reforma administrativa.
[1] Após a sua promulgação, a PEC n. 186/2019 tornou-se a Emenda à Constituição n. 109/2021.
[2] Ainda estão pendentes de votação a PEC da Reforma Administrativa, a PEC n. 188/2019 e a PEC n.438/2019, integrantes do Plano Mais Brasil.
[3] A Regra de Ouro (artigo 167, III, CF) proíbe ao Governo “realizar operações de crédito que excedam o montante de despesas de capital”. Ou seja, determina que o Governo não pode contrair dívidas para pagar despesas permanentes e obrigatórias, como o salário dos servidores públicos.
[4] Dados levantados pelo Instituição Fiscal Independente (IFI), disponível em: < https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/585101/CI10_PEC_emergencial.pdf > Acesso em 11/03/2021.
[5] Disponível em: < https://twitter.com/FelipeSalto/status/1370064863070978052 > Acesso em 11/03/2021.