O turbulento ano de 2020 nos trouxe importantes lições; entre elas, que a união, realmente, faz a força. No âmbito do Direito, existe um tipo de ação judicial que representa essa união na prática: a ação coletiva. No entanto, a sua força pode estar sob ameaça.
Inspirada na class action americana, a ação coletiva é o instrumento adequado para tutelar situações que extrapolam a esfera de direitos individuais de cada um. Em razão de um mesmo ato ou fato, como o rompimento da barragem de Mariana (MG) ou os vazamentos de óleo na costa brasileira, a ação coletiva pode ser manejada para requerer a justa reparação de um dano a centenas, milhares e até milhões de pessoas.
A sua relevância é inquestionável. A um só tempo, a ação coletiva democratiza o acesso à Justiça e ajuda a controlar o volume de ações que abarrotam o Poder Judiciário. Com apenas uma decisão judicial, inúmeras pretensões são satisfeitas.
Ao longo do ano de 2021, duas alterações significativas poderão ocorrer no regramento das ações civis públicas (ACPs), a espécie de ação coletiva mais utilizada no Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça.
A primeira delas é o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.101.937/SP, em que o Supremo Tribunal Federal decidirá sobre a abrangência das decisões judiciais nas ACPs: se têm efeitos no país inteiro ou tão somente nos limites da competência territorial do órgão julgador (artigo 16 da Lei nº 7.347/1985, a Lei da Ação Civil Pública).
O julgamento, pautado aos 45 minutos do segundo tempo do ano passado (16/12/2020), foi adiado para 2021. O procurador-Geral da República, Augusto Aras, já se manifestou nos autos requerendo a reinclusão do processo em pauta com prioridade em razão: 1) da determinação do artigo 1.035, § 9º, do Código de Processo Civil de que o julgamento de repercussão geral deve ser finalizado no prazo de um ano; e 2) da atual suspensão de todas as ações coletivas que tratam sobre o objeto daquele processo (reajustes abusivos de contratos bancários) e sobre vários outros temas de tutela coletiva. Tudo indica, portanto, que o julgamento será concluído neste ano.
O destaque é devido pela relevância da discussão. O artigo 16 da Lei da ACP, que limita os efeitos da sentença coletiva, foi inserido pela Medida Provisória nº 1.570-5, de 21 de agosto de 1997, de autoria do presidente Fernando Henrique Cardoso, para a defesa de interesses fazendários.
Atualmente, prevalece decisão de 2016 da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que afastou a aplicabilidade do dispositivo, por entender que não deve haver limitação geográfica à coisa julgada em ações coletivas.
Se a Suprema Corte entender que esse dispositivo é constitucional, o futuro das ações coletivas certamente estará comprometido. Diversas ACPs que estão em curso poderão ser afetadas, haverá um efeito multiplicador de demandas e, ainda, poderá instaurar-se um cenário de franca insegurança jurídica face às prováveis decisões conflitantes em processos sobre o mesmo tema.
A segunda novidade que o ano de 2021 nos reserva é a tramitação dos Projetos de Lei (PLs) nº 4.441/2020 e nº 4.778/2020, apresentados no final do ano de 2020, que pretendem criar a Nova Lei de Ação Pública. Ambos se encontram apensados na Câmara e aguardam o crivo da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Algumas inovações previstas nos PLs são: 1) a consagração do entendimento do STJ sobre a eficácia nacional das decisões, sem limitação territorial; 2) o maior controle em relação aos legitimados para propor a ação (sobretudo com relação às associações civis, que deverão ter pertinência temática com o objeto das ACPs); e 3) a ocorrência de litispendência coletiva mesmo quando os autores são distintos.
A nova lei também altera dispositivos de outras leis esparsas que tratam sobre a tutela coletiva, como o Código de Defesa do Consumidor, o Código de Processo Civil, a Lei do Mandado de Segurança, a Lei da Ação Popular e o Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outras. A intenção seria tornar o microssistema coletivo cada vez mais coeso.
Com as iminentes alterações tanto no âmbito jurisprudencial quanto no legislativo, as ações coletivas poderão ganhar uma roupagem totalmente nova a partir de 2021. Será que as novidades fortalecerão ou enfraquecerão esse importante instrumento da luta coletiva no Brasil?
Fonte original: https://www.conjur.com.br/2021-fev-05/julia-mezzomo-qual-futuro-acoes-coletivas-brasil