O Governo Federal, ao propor a Reforma Administrativa, assegurou que os servidores atuais não seriam impactados. Nos termos da Exposição de Motivos, “Em função de situações legalmente constituídas, a proposta prevê regras de transição transparentes (…)”.
O objetivo do artigo de hoje é analisar qual o grau de transparência dessas regras de transição. Se colocarmos uma lupa, será mesmo que, nas palavras de Paulo Guedes, “direitos e prerrogativas estruturais dos atuais servidores que compõem os quadros da administração pública não serão afetados”?
Vou perder minha estabilidade?
Não exatamente. Aqueles que já forem servidores públicos quando a PEC n. 32/2020 entrar em vigor (provavelmente, no primeiro semestre de 2021), terão direito à estabilidade.
No entanto, todos os servidores, do recém-ingresso ao que está à beira da aposentadoria, serão submetidos a uma avaliação de desempenho periódica, que pode ser bastante problemática. Vamos entender o porquê.
Segundo o art. 2º, I, da PEC n. 32/2020, está assegurada a estabilidade dos servidores que a conquistaram após os 3 (três) anos de exercício e a aprovação no estágio probatório. Como já abordamos no artigo “Reforma Administrativa: é necessário acabar com a estabilidade?”, a demissão destes servidores só será possível seguindo as regras estabelecidas no art. 41 da Constituição Federal.
A questão é que a Reforma propõe alteração das hipóteses de demissão dos servidores estáveis. Além de permitir a demissão em razão de decisão proferida por órgão judicial colegiado, a PEC n. 32/2020 atribui à lei ordinária a regulamentação sobre avaliação periódica de desempenho.
Em outras palavras, o servidor atualmente estável poderá ser demitido a partir da primeira decisão (acórdão) proferida por mais de um Magistrado (colegiada), que ocorrem nas Turmas dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais (2ª instância). Ou seja, se antes tínhamos a garantia de aguardar o término do processo judicial (trânsito em julgado) antes de demitir algum servidor, a Reforma propõe que o julgamento pela 2ª instância seja suficiente para demiti-lo, mesmo que haja a possibilidade de reversão da condenação nos Tribunais Superiores.
Outro aspecto é que a avaliação periódica de desempenho, que até hoje não foi regulamentada por Lei Complementar, passa a ser especificada por uma Lei Ordinária (art. 41, §1º, I, e art. 41-A, I, da PEC n. 32/2020).
Parece uma alteração singela, mas não é: a votação de uma Lei Ordinária é bem mais simples, porque requer apenas a aprovação da maioria simples dos parlamentares, enquanto a Lei Complementar exige um quórum de maioria absoluta, difícil de se obter.
Essas leis serão votadas durante a “Fase 2” da Reforma Administrativa, cuja promessa é ocorrer logo em seguida à aprovação da PEC n. 32/2020. Um tanto quanto “às pressas”, até mesmo porque a intenção é aprovar uma avaliação mais rígida, que dê real abertura à demissão dos servidores públicos, tanto os novos quanto os atuais.
Como será essa avaliação? A chefia imediata deterá o poder de, sozinha, determinar que um servidor seja demitido? Haverá critérios objetivos e razoáveis, ou o cargo do servidor estará nas mãos de cada liderança?
Devemos lembrar que a proposta envolve o aumento de indicações políticas no serviço público. Não haverá mais um percentual de cargos de liderança reservados a servidores de carreira. Todos os cargos de liderança, e até mesmo cargos “técnicos” e “estratégicos” poderão ser ocupados por pessoas estranhas à Administração Pública.
E a característica natural de um “cargo de confiança”, ou “cargo político”, é a sua volatilidade. A cada novo governo, trocam-se os gestores. Toda essa oscilação, por certo, impactará as avaliações de desempenho e, por consequência, a demissão de servidores que, na teoria (e apenas na teoria mesmo) seriam “estáveis”.
Quais garantias posso perder?
O art. 2º, II, da PEC prevê que certas garantias dos servidores atuais serão mantidas, desde que estejam previstas em lei específica vigente. Isso quer dizer que, se estiverem previstas em normas infralegais, como portarias, instruções normativas e decretos, as garantias serão cortadas para os servidores atuais.
Essas prerrogativas dizem respeito a indenizações, adicionais, licenças, progressões e promoções, incorporações salariais e reduções de jornada (proposta de redação para o art. 37, XXIII, “a” a “j”).
Os Especialistas em Meio Ambiente, vinculados ao IBAMA, por exemplo, serão impactados por essa alteração, pois o regramento específico sobre a progressão e a promoção baseada em tempo de serviço está disposta em uma portaria federal (Portaria n. 2.657/2019).
Ainda é preciso salientar que essa regra de transição prevê que tais garantias poderão ser cortadas pela alteração ou pela revogação da lei específica.
Em miúdos, coloca-se mais uma vez as garantias dos servidores atuais à mercê da composição do Poder Legislativo do momento.
Meu salário poderá ser reduzido?
Esse é um ponto que gera confusão no texto da proposta. Isso porque, até que a Lei Complementar Federal que estabelece os parâmetros gerais sobre a política remuneratória venha a ser editada (art. 39), será garantido um “regime jurídico específico” para os servidores atuais.
A PEC não adianta nenhuma regra sobre a tal política remuneratória dos atuais servidores. E, se considerarmos a garantia da irredutibilidade de vencimentos, assegurada pelo art. 37, XV, do atual texto constitucional, podemos concluir que os salários dos servidores atuais não poderão sofrer reduções.
Ainda assim, é preciso ter cautela na análise das próximas fases da Reforma, já que, por mais que as remunerações possam não ser reduzidas, as políticas remuneratórias podem dispor de outros artifícios, como o congelamento de salários (inexistência de reajustes ao longo do tempo) ou a redução de jornada, com redução proporcional de vencimentos.
Apesar de o governo se comprometer a não reduzir as remunerações atuais com a Reforma, há indícios de que esse é (ou deveria ser) um dos seus objetivos. A PEC Emergencial, proposta no ano passado, busca justamente possibilitar a redução das jornadas e dos salários atuais em 25%.
Não bastasse isso, uma das maiores críticas à Reforma Administrativa é que ela não sanaria imediatamente a crise financeira e não controlaria os gastos com pessoal, objetivos mais urgentes, que inclusive justificaram a própria existência da Reforma.
Será que o governo não utilizará essa “brecha”, adiada para a “Fase 2”, e dará um jeitinho de mexer nos salários atuais?
Cenas para os próximos capítulos?
Após a exposição sobre as regras de transição previstas na PEC, a reflexão a se fazer é se devemos esperar pelos “próximos capítulos” ou, em outras palavras, “pagar pra ver”.
A questão é ter consciência da proposta em si e dos possíveis impactos para o atual e para o futuro serviço público brasileiro. Mesmo que sejam meras possibilidades, é melhor prevenir alterações drásticas, antes que sequer seja possível remediar.