I – Introdução
O assédio no ambiente de trabalho é uma questão de relevância global que impacta diversos setores da sociedade. No Brasil, o tema assume contornos especialmente preocupantes no serviço público, em que as estruturas hierárquicas rígidas e a estabilidade dos cargos podem criar um terreno fértil para a perpetuação de práticas abusivas. Historicamente, o assédio, em suas diversas formas – moral, sexual e institucional – tem sido subnotificado e pouco abordado pelas instituições, seja pela falta de políticas públicas eficazes, seja pela persistência de uma cultura de silêncio e impunidade.
Nos últimos anos, o tema ganhou visibilidade na mídia e nas agendas políticas, impulsionado por pesquisas e estudos que expõem a gravidade e a extensão do problema. Um estudo recente da República.org, conduzido pelas cientistas políticas Michelle Fernandez e Ananda Marques, revela que 6 em cada 10 mulheres em posições de liderança no Governo Federal já sofreram assédio moral, enquanto 28,3% relataram ter sido vítimas de assédio sexual. Esses dados não apenas ilustram a magnitude do problema, mas também evidenciam a necessidade urgente de uma intervenção robusta e coordenada.
Diante desse cenário, é essencial um debate aprofundado que busque a elaboração e a implementação de políticas eficazes no combate ao assédio no serviço público. Este artigo busca contribuir para essa discussão ao analisar as causas estruturais do problema, as falhas na legislação vigente e as possíveis soluções para promover um ambiente de trabalho mais seguro e justo para todos os servidores públicos.
II – Lacunas legais e a necessidade de reformas
A ausência de uma legislação federal abrangente e específica para o combate ao assédio no ambiente de trabalho é uma das maiores lacunas no enfrentamento dessa questão no Brasil. Atualmente, as normas jurídicas que tratam do tema são dispersas e muitas vezes insuficientes para lidar com a complexidade e a gravidade dos casos de assédio.
A Constituição da República (CR) de 1988 assegura o direito à dignidade e ao ambiente de trabalho saudável, mas não apresenta uma definição detalhada ou um mecanismo claro de proteção contra o assédio moral e sexual. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por sua vez, aborda o assédio moral de maneira indireta, sem estabelecer um conceito preciso ou um conjunto de medidas preventivas e punitivas. No serviço público, a Lei n. 8.112/1990, que rege o regime jurídico dos servidores públicos federais, menciona condutas que podem ser enquadradas como assédio, mas não de forma explícita ou sistemática.
Embora a legislação brasileira contemple dispositivos que podem ser utilizados para combater o assédio moral e sexual, a ausência de definições explícitas e de mecanismos específicos de prevenção e punição dificulta a aplicação efetiva dessas normas. Essa lacuna reforça a necessidade de uma legislação mais clara e abrangente, que trate diretamente do assédio no ambiente de trabalho, tanto no setor público quanto no privado.
Essa fragmentação legislativa cria dificuldades tanto para as vítimas, que muitas vezes não sabem como ou onde denunciar, quanto para os gestores e órgãos de controle, que enfrentam obstáculos na aplicação de sanções e na promoção de um ambiente de trabalho seguro. A falta de uma definição unificada e abrangente do que constitui assédio moral e sexual no serviço público também gera inconsistências no tratamento dos casos, deixando muitas situações impunes.
A ratificação da Convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apresenta-se como uma oportunidade crucial para o Brasil avançar nessa área. Esta convenção é o primeiro instrumento internacional que trata especificamente da violência e do assédio no mundo do trabalho, oferecendo uma definição ampla que inclui tanto o assédio moral quanto o sexual, além de estabelecer diretrizes para a prevenção e o combate a essas práticas.
Embora a convenção já tenha sido adotada pela OIT, sua ratificação e implementação pelo Brasil ainda estão pendentes. A adesão a esse tratado poderia fortalecer o marco jurídico nacional e proporcionar uma base mais sólida para a proteção dos trabalhadores.
A combinação entre a ratificação da Convenção nº 190 da OIT e a implementação de uma legislação nacional mais robusta e abrangente pode representar um avanço significativo no combate ao assédio no serviço público, promovendo um ambiente de trabalho mais seguro, respeitoso e equitativo para todos os servidores.
III – Desafios na Aplicação da Lei nº 14.450/2023: A Necessidade de Fortalecer o Programa de Prevenção e Combate ao Assédio e à Violência Sexual
A Lei n. 14.540, sancionada em 2023, institui o “Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e Demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual” no âmbito da administração pública direta e indireta, em todas as esferas de governo. Este marco legislativo representa um passo significativo no combate ao assédio, especialmente considerando a carência de regulamentações específicas que tratam do tema.
Essa lei tem como objetivo central a criação de um ambiente de trabalho seguro e livre de assédio sexual e demais formas de violência sexual no serviço público. Ela se aplica a servidores públicos federais, estaduais, distritais e municipais, abrangendo tanto órgãos da administração direta quanto entidades da administração indireta, como autarquias, fundações e empresas públicas.
Entre as medidas previstas pela lei, destacam-se:
(i) Prevenção: Implementação de políticas e programas de prevenção, que incluem campanhas educativas, treinamentos e ações de conscientização destinadas a todos os servidores;
(ii) Denúncia: Estabelecimento de canais confidenciais e seguros para que vítimas e testemunhas possam relatar casos de assédio, garantindo a proteção contra retaliações; e
(iii) Investigação e Punição: Procedimentos claros para a apuração de denúncias, com garantias de imparcialidade e sigilo, além da aplicação de sanções adequadas aos infratores.
Apesar de seu potencial transformador, a Lei n. 14.540/2023 enfrenta desafios significativos em sua implementação. Um dos principais entraves é a falta de conhecimento sobre a existência e os mecanismos da lei, tanto entre servidores quanto entre gestores públicos. A disseminação limitada de informações e a ausência de treinamentos específicos dificultam a aplicação efetiva das medidas previstas.
Além disso, a cultura organizacional em muitos órgãos públicos ainda é marcada por práticas hierárquicas rígidas e por uma resistência à mudança, o que pode impedir a adoção de políticas de prevenção e enfrentamento do assédio. Há também a necessidade de recursos adequados para a implementação das ações previstas na lei, como a criação de equipes especializadas para conduzir investigações e prestar suporte às vítimas.
Se implementada de forma eficaz, a Lei n. 14.540/2023 tem o potencial de transformar o ambiente de trabalho no serviço público, promovendo uma cultura de respeito e dignidade. Além de prevenir o assédio, a lei pode contribuir para a melhoria do clima organizacional, aumento da produtividade e fortalecimento da confiança nas instituições públicas.
IV – Guia Lilás da CGU: Uma Ferramenta Contra o Assédio e a Discriminação
Para auxiliar na aplicação das normas de combate ao assédio, a Controladoria-Geral da União (CGU) lançou uma versão atualizada do Guia Lilás em 2024. Esse documento tem como objetivo orientar os servidores sobre os tipos de assédio, como reconhecê-los e quais medidas tomar ao se depararem com situações abusivas.
O Guia Lilás também fornece diretrizes para gestores públicos, ajudando-os a promover ambientes mais seguros e inclusivos. Sua ampliação e disseminação são fundamentais para a efetividade da Lei n. 14.540/2023 e para o fortalecimento das políticas de prevenção e combate ao assédio no serviço público.
No entanto, apesar de sua relevância, ainda há um grande desafio na difusão desse material entre os órgãos do Executivo. Muitos servidores desconhecem a existência do Guia Lilás, o que limita sua efetividade como ferramenta de prevenção. A ampla divulgação desse documento é essencial para garantir que todos os servidores tenham acesso às informações necessárias para identificar e combater o assédio.
Ademais, é necessário que os órgãos governamentais promovam capacitações e treinamentos baseados no Guia Lilás, permitindo que as informações contidas no documento sejam absorvidas e aplicadas no cotidiano das instituições. A implementação de campanhas internas de conscientização e a distribuição de versões digitais e impressas do Guia Lilás também podem fortalecer a adesão ao seu conteúdo e incentivar a criação de ambientes mais seguros para os servidores.
Por fim, a incorporação do Guia Lilás nos processos internos de auditoria e compliance pode garantir que suas diretrizes sejam seguidas de forma mais rigorosa e que casos de assédio sejam tratados com a devida seriedade e responsabilidade.
V – Conclusão
O assédio no serviço público brasileiro é uma questão urgente e complexa, que afeta diretamente a saúde, o bem-estar e a produtividade dos servidores, além de comprometer a qualidade dos serviços prestados à sociedade. É evidente que o problema não é pontual ou esperádico, mas sim estrutural, exigindo uma resposta sistemática e coordenada. Nesse cenário, contar com uma assessoria jurídica especializada é essencial para garantir a devida aplicação das leis, proteger as vítimas e atuar nos processos de responsabilização.
A análise das lacunas legais e das recentes iniciativas legislativas, como a Lei n. 14.540/2023, revela que, embora alguns avanços tenham sido feitos, ainda há um longo caminho a percorrer para garantir um ambiente de trabalho seguro e respeitoso no setor público. A falta de uma legislação federal específica que defina e combata o assédio de maneira clara e abrangente, somada à necessidade de ratificação da Convenção nº 190 da OIT, evidencia a necessidade de ações legislativas mais robustas e integradas.
A construção de uma cultura organizacional que rejeite o assédio e promova o respeito e a dignidade deve ser uma prioridade estratégica para o serviço público. Isso implica não apenas a adoção de medidas punitivas, mas também o investimento em ações educativas, preventivas e de apoio às vítimas. Programas de capacitação contínua, campanhas de conscientização e a criação de canais de denúncia seguros e eficazes são fundamentais para transformar o ambiente de trabalho.
Neste sentido, o Brasil tem diante de si uma oportunidade histórica de liderar pelo exemplo, mostrando que é possível combater o assédio de forma eficaz e construir um ambiente de trabalho mais seguro e inclusivo para todos os servidores públicos.