
Em 15 de junho de 2020, o WhatsApp, empresa associada à bigtech Facebook, anunciou o Brasil como palco de sua nova modalidade de pagamentos. O WhatsApp Pagamentos, nome dado à nova funcionalidade, possibilitaria que usuários realizassem transferências de dinheiro pelo aplicativo por meio de cartões vinculados ao Banco do Brasil, Nubank e Sicredi. Além disso, a operacionalização do sistema seria feita pela Cielo, empresa que tem o Banco do Brasil como um dos acionistas controladores.
Assertivamente, contados oito dias do anúncio da novidade, o Banco Central do Brasil (BCB) suspendeu a atividade do WhatsApp Pagamentos em todo o território nacional, pois seria necessário realizar uma análise detalhada para aferir possíveis “danos irreparáveis no que se refere à competição, eficiência e privacidade de dados”.[1]
Em sentido semelhante, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) notificou a bigtech para prestar esclarecimentos sobre a forma de parceria e impôs medida cautelar para suspender a funcionalidade, medida que foi revogada poucos dias depois.
Analisando o contexto em um momento posterior, podemos visualizar que, com aproximadamente 120 milhões de usuários no Brasil, é indiscutível que a instituição de um novo meio de pagamento via WhatsApp geraria considerável risco diante do sistema de pagamentos instantâneo do Banco Central do Brasil que seria lançado em novembro do mesmo ano, o Pix.
A concentração do sistema de pagamentos no setor privado, em especial no caso de grandes conglomerados de tecnologia, acarreta considerável risco concorrencial ao sistema financeiro.
O caráter anticompetitivo decorre da falta de limites às ações dos novos players – vez que ainda não havia norma vigente acerca de sua atuação – e da possível (e provável) formação de um monopólio que, no futuro, poderia se tornar difícil de regular. Assim, o resultado seria a concentração do sistema de pagamentos de um país nas mãos de um único player do mercado.
Como exemplo, podemos citar outro caso da bigtech Facebook que, em junho de 2019, anunciou o lançamento da stablecoin Libra, moeda emitida diretamente pela empresa, sem intermédio estatal. A inovação foi imediatamente suspensa, por decisão conjunta, em todos os países do G7[2].
Apesar de seguir tendência regulatória consolidada internacionalmente, a posição do BCB no caso do WhatsApp Pagamentos foi duramente criticada pela mídia internacional.
O jornal Financial Times descreveu o caso como uma posição movida pelos interesses dos grandes bancos brasileiros na tentativa de eliminar um possível novo concorrente. O jornal ainda apontou a posição do regulador como uma forma de barrar o avanço da tecnologia e, consequentemente, impossibilitar a bancarização de milhões de brasileiros.[3]
Breve análise regulatória
É necessário analisar as medidas do Banco Central levando-se em conta o espectro mais amplo no qual estão inseridas. A suspensão do WhatsApp Pagamentos se deu, não pelo serviço inovador em si, mas pelo provável monopólio que a empresa teria sobre o mercado, em detrimento da posterior implementação do Pix, já desenvolvido pelo BCB à época.
Como resposta, em 22 de outubro de 2020, o Banco Central editou a Resolução BCB nº 24, na qual, em seu artigo 4º, inciso IV, modificou a regulação acerca da figura do Iniciador de Transação de Pagamento.
Os agentes que se enquadrarem nessa modalidade poderão, como o próprio nome denota, intermediar transações financeiras entre duas partes em suas plataformas, sem que detenham, em momento algum, os fundos transferidos na prestação do serviço. (exatamente o serviço oferecido pelo WhatsApp Pagamentos).
Fato é que o Banco Central, em clara resposta à movimentação agressiva do Facebook, remodelou a figura do Iniciador de Transação de Pagamento com vistas a regulá-lo de forma mais detalhada, tanto por questões concorrenciais, quanto por questões de segurança.
Exemplo cristalino dessas duas cautelas é a obrigatoriedade de que os Iniciadores integralizem e mantenham um capital mínimo de R$ 1 milhão de reais após sua autorização para atuar. Um valor baixo, o qual garante a concorrência, atrelado à segurança fornecida aos usuários contra eventuais fraudes ou pagamentos a descoberto.
Com relação a segurança, a resolução veda que os iniciadores exijam do usuário final quaisquer outros dados além dos necessários para prestar o serviço de iniciação da transação de pagamento. Indo além, veda, também, que utilizem, armazenem ou acessem os dados para outra finalidade que não seja a prestação do serviço de iniciação de transação de pagamento expressamente solicitado pelo usuário final.
Reflexo recente do impacto que a nova figura do Iniciador de Transação de Pagamentos trouxe ao mercado foi a solicitação de credenciamento do próprio WhatsApp. Apesar da funcionalidade de pagamentos via aplicativo ser igual à pretendida anteriormente, agora o plano de fundo do funcionamento é o próprio Pix, até então ameaçado.[4]
Uma nova porta para modelos de negócio inovadores
A perspectiva que se apresenta é de completa mudança na forma que entendemos e realizamos transações financeiras. O sistema de pagamentos instantâneos, com liquidação bruta em tempo real, representa uma grande ameaça às tradicionais bandeiras de pagamento que dominam o mercado (Visa, Mastercard etc.), na medida em que se apresenta como uma solução mais rápida, segura, eficiente e menos onerosa.
O grande potencial de inovação trazido pelo Iniciador de Transação de Pagamentos é a possibilidade que qualquer empresa, desde que respeitados os requisitos normativos, possa iniciar uma transação de pagamento sem um instrumento de pagamento (tipicamente representado por um cartão bandeirado).
O acesso ao sistema de pagamentos de pagamentos, que dependia de instrumentos emitidos por empresas privadas (bandeiras), passa a contar com alternativa pública de qualidade.
Com um caminho pavimentado por meio do Pix e com o arcabouço regulatório foi dado sinal verde para que empresas explorem a forma remodelada de atuação no arranjo de pagamentos.
O grande salto de inovação representado pelo Pix e pelo novo Iniciador de Transação de Pagamento, possibilita ao sistema financeiro um ambiente fértil e competitivo para a criação de novas startups e, para o caso de empresas já consolidadas, uma possível forma de se reinventar.
O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
Disponível em: <https://www.bcb.gov.br/detalhenoticia/17144/nota>.
[2] Disponível em: <https://www.fnlondon.com/articles/why-g7-ban-on-facebooks-libra-is-a-good-thing-for-digital-cash-in-the-long-run-20201020>.
[3] Disponível em: <https://www.ft.com/content/ccc128a0-e6db-456e-a5b6-ff7e14b05e1d>.
[4] Disponível em: <https://economia.estadao.com.br/blogs/coluna-do-broad/whatsapp-cede-a-pressao-e-pede-aval-do-bc-para-ser-iniciador-de-pagamentos-no-brasil/>.