Não há obviedade maior, no mundo jurídico, do que afirmar que o Covid-19 impactou diversas relações contratuais. Muitos profissionais do Direito já trataram da questão, e os que defenderam a aplicação da teoria “X” ou do princípio “Y” como solução mágica foram menos felizes do que aqueles que demonstram a hipossuficiência da aplicação literal e isolada de um postulado.
O propósito dessa postagem é fornecer 5 insights relevantes para tratar da questão.
1) Nenhuma teoria ou instituto jurídico, sozinho, vai resolver o problema
Os trend topics até aqui invocados para resolver a questão são: teoria da imprevisão, quebra da base do negócio, onerosidade excessiva e impossibilidade de cumprimento da prestação.
Por que nenhum deles, sozinho, resolve o problema? Porque foram desenvolvidos para resolver impactos contratuais sob o ângulo de uma das partes. À exceção de contratos que, pela sua natureza, acomodam isonomicamente o impacto da pandemia para as partes envolvidas – como o que vincula a remuneração da(s) parte(s) ao faturamento da(s) outra(s) – o Covid-19 prejudica todas as partes envolvidas na relação contratual. Gustavo Kaercher cunhou com propriedade a expressão “Onerosidade Excessiva Universal e Transitiva”.
Porém, as partes são atingidas em maior ou menor grau, e a alocação de riscos e respectivos incentivos das partes no contrato informam esse grau de intensidade.
Entender que todos estão sob a mesma tempestade, mas em embarcações diferentes, é essencial para vislumbrar a direção correta, rumo à solução dos impasses contratuais decorrentes da pandemia.
2) A solução passa pela análise da alocação de riscos e incentivos
Para que serve um contrato? Uma de suas principais funções é transferir riscos entre as partes mediante previsão de incentivos. O locador de imóvel comercial transfere ao locatário o risco de vacância do imóvel, que por sua vez transfere àquele o risco de imobilização de patrimônio vultoso para obter espaço que permita a exploração de seu negócio. O valor do aluguel é o incentivo que ambos acordaram pelas respectivas transferências de riscos.
A estabilização dos riscos ordinários transferidos e dos incentivos é a própria essência de um contrato bilateral. No entanto, a pandemia atual é um risco extraordinário, enquadrada como força maior, que altera a equação riscos–incentivos originária.
É o que se extrai do artigo 421-A do Código Civil, segundo o qual presumem-se simétricos todos os contratos, até que elementos concretos afastem essa presunção.
Para medir esse impacto, as partes devem avaliar e rememorar todos os fatos e circunstâncias envolvidos na alocação original dos riscos e incentivos.
É a diretriz do inciso II do artigo 421-A, que impõe o respeito e a observância à alocação de riscos definida pelas partes.
Essa interpretação também tem respaldo no artigo 113, §1º, V do Código Civil, “A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração”.
Os tópicos abaixo buscam dar concretude à solução proposta.
3) Cada caso é um caso
Parece trivial, mas, necessariamente, a melhor solução está vinculada às peculiaridades de cada contrato.
Um contrato de locação comercial pode ser repactuado caso a atividade empresarial do locatário tenha sido gravemente impactada pela pandemia, como no caso de academias esportivas; ou pode manter-se inalterado, como nos depósitos de centros de distribuição logísticos “última milha” do e-commerce.
Mesmo nas locações comerciais para academias esportivas, o impacto não é homogêneo: sua longevidade indicará o “peso” dos meses de pandemia ao longo da relação; os reajustes superiores ou inferiores à prática de mercado serão inseridos na equação; a relevância econômica ou estratégica e sua repercussão subjetiva serão levadas em consideração.
Ainda, o nível de essencialidade de determinado contrato para cada parte – que pode ser tangibilizado pelo percentual que representa nas receitas ou despesas da parte – é fundamental na discussão. Como exemplo, impactará a repactuação da hipótese acima a constatação de que o locador é um idoso que trocou sua previdência privada pela aquisição do espaço comercial locado para a academia.
4) Demonstre e comprove seus riscos no contrato
Para identificar os parâmetros da repactuação, imprescindível levantar, com o maior grau de detalhe, os dados que embasarão o pedido de modificação da base contratual.
Para auxiliar na identificação dos riscos de cada contrato, eis uma lista exemplificativa de informações fundamentais: a) nível de correlação entre o Covid-19 e o objeto do contrato; b) comprovação efetiva da influência do Covid-19 no contrato; c) prazo contratual cumprido e a cumprir; d) flutuação dos impactos do contrato no negócio das partes; e) práticas reiteradas durante a relação contratual; f) projeções de cenários pós-pandemia; g) facilidade de acesso a capital de terceiros em virtude da pandemia; h) subsídios e políticas públicas eventualmente aderentes ao contrato; i) aspectos subjetivos das partes que agravam ou atenuam os efeitos do Covid-19 no contrato.
5) Evite o judiciário
Como a solução proposta envolve necessariamente o exercício de empatia das partes e o entendimento profundo sobre o efetivo impacto da pandemia em cada contrato, torna-se intuitivo afirmar que a melhor solução é a revisão consensual do contrato.
A uma, para evitar o risco de descobrir, no processo judicial, que a outra parte suportou ônus maior do que o do demandante; a duas, pelo risco de que a outra parte demonstre com mais competência a relevância do Covid-19 em sua matriz de riscos; a três, pelo risco de que a demora na solução judicial definitiva frustre o interesse de todos.
Se não for possível chegar a um acordo pela atuação direta das partes, busque um terceiro apto a alcançar o consenso.
Temos convicção de que as 5 diretrizes tratadas fornecem o caminho para mitigar os impactos da pandemia nos contratos.
Solução simples, mas não simplória, e que demanda que as partes compreendam que não há ilesos na relação, que o levantamento das peculiaridades de cada contrato é fundamental e que a via consensual é a melhor a ser trilhada.